BARÃO
O Desafio da Padoca começa no Vale do Paraíba, a partir do posto Castelões.
Cheguei cismado no meio da moçada não querendo parecer intruso com meus 67 anos pedalando minha mountain entre uma absoluta maioria de espeederos. Depois de 15 km rumo a Campos do Jordão você encara mais uns 15 de serra, sem refresco até Santo Antonio do Pinhal, atravessa a cidade, nova pirambeira, depois um trecho bucólico e caipira e outra subida de serra pela estrada velha, sem refresco, aí por uns 12 quilometros até chegar a Campos. Aí é descer até o vale zunindo a brisa pelas ventas por 20 quilometros e mais os 15 do pé da serra até o retorno ao Castelões, somando 83 no cateye. Desistências pelo caminho, carros de apoio catando pregos e eu chegando entre os que chegaram. Alguns moços se chegam, puxam prosa e a inevitável pergunta sobre a idade e qual o segredo. Penso, mas não respondo: ah! o segredo é o Barão, meu pai.
Olímpia era uma cidade pequena, dividida e atravessada pelo bosteiro Olhos D´Água. Numa metade ficava o centro e o jardim da matriz, na outra, o jardim da igrejinha, o bairro do Pito Aceso, a estação da São Paulo/Goiás e algum comércio espalhado, de modo que pra qualquer lugar que se fosse, ou se subia, ou se descia.
Essa pirambeira inibia o uso das magrelas. Não inibia meu pai. Tinha sua Phillips inglesa preta, pois opções de cores não havia, assim como não havia bicicleta fabricada por aqui.
Certa vez Barão foi notícia de primeira página publicada na Voz do Povo. “Colisão de bicicletas na esquina da São João com a Jorge Tibiriçá acidenta dois cidadãos olimpienses.”
Fratura de fêmur e meu pai foi pra Barretos fazer um implante de cabeça de fêmur por conta do antigo INPS. Uns dias de hospital, chegou em casa mancando e muito bravo com os médicos que o proibiram de pedalar, além de o deixarem com uma perna mais curta. Imaginou a diferença, cortou uns calços de papelão, enfiou no sapato e andava sem mancar. Aos poucos foi diminuindo a altura dos calços até eliminá-los de vez. A perna se ajeitou, nunca mais mancou. Voltou a pedalar.
Ah! O segredo. Quando nas trilhas, nos desafios das pirambeiras, logo à minha frente vai pedalando meu pai, na sua Phillips preta, sem câmbio, apenas uma catraca 22 atrás, sem sapatilha clipada no pedal, sem selim com gel e canaleta pra proteger a próstata, sem capacete, sem bermuda anatômica e forrada pra proteger o saco e a bunda, sem camisa em tecido que ventila e elimina o suor, sem isotônicos na caramanhola, sem caramanhola, sem luvas, sem cateye e sem tanto mais. Vai de calça, cueca, cinta e camisa com caneta no bolso. Vai de sapato com cadarço, meia Lupo serzida no ovo, presilha prendendo a barra da calça pra não engastalhar na corrente.
Vai bem na minha frente, ainda hoje ensinando o caminho.
Otoni Gali Rosa
Dezembro/2012
A MALA , PAQUITO E A “SUÍÇA”.
Olímpia era uma cidade pequena. O fogo dos meus sonhos e fantasias me fez procurar suas portas de saída.
A mãe, consolada pelo pai, me comprou uma mala pequena, marrom, de papelão com cantoneiras de lata, onde ajeitamos minhas coisas poucas. Ela também acomodou na mala um despertador Westclock, de corda, pois não mais me acordaria pelas manhãs dos novos dias. Também um vidro de óleo de fígado de bacalhau para tomar devagar, uma colher de sopa por dia, pois certamente o ragu que conseguisse não teria a nutrição, a qualidade
e o carinho da comida gostosa e cheirosa até então feita por ela.
E mais, um estojinho de linhas, agulhas e um ovo de pedra pra cerzir, pois ela não mais pregaria meus botões perdidos e nem cerziria minhas meias furadas.
Mais, juntei desenhos e rabiscos pra mostrar não sei a quem, mas a quem pudesse olhá-los e dizer deles.
Na mala pequena, algumas coisas não couberam e as tive que deixar pra trás.
Meus pais, não couberam na mala.
Mestres, amigos e amores também ficaram.
Paquito, meu companheiro vira-latas, ficou, amuou e morreu.
A mercswiss, aro 26, a “suíça”, que por 10 anos me ampliou o espaço da cidade pequena e dos seus arredores também não coube na mala. Ficou por um tempo num canto do quintal, presente, fazendo com que meus pais ao vê-la, sentissem um pouco a minha presença. Não sei que fim levou. Procurei não saber pra não sofrer com
as lembranças dos momentos intensamente vividos juntos, eu, a “suíça” e o Paquito.
A “suíça” ganhou personalidade única, diferente daquela menina bonita e bem vestida que chegou zerinha numa caixa de papelão e madeira, que encantado abri e que encantado ajudei meu pai a montá-la, pois com o tempo, para torná-la mais leve e ágil, tirei-lhe o protetor da corrente, os para-lamas e troquei a catraca de 18 para 22 dentes, pois a cidade, cortada pelo Olhos d’Água era pródiga em ladeiras.
Não havia câmbio por lá, as magrelas tinham apenas um volante na frente e uma catraca atrás.
Ficou mais moça, mais forte, mais despojada, mais magra, corajosa e ousada.
Na gráfica Barão, onde aprendi o primeiro ofício, o expediente se encerrava às 18 horas. No verão, era dia e o sol ainda sorria me chamando pra nadar no Cachoeirinha, um rio distante cerca de 6km de casa. Me mandava. Paquito saltava na garupa da “suíça” e lá íamos ventando e comendo poeira pela estradinha de terra.
No domingo, repetíamos a aventura, só que saindo bem cedo pra passar o dia nadando, canoando, pescando e saltando da ponte que cruzava o rio pra mergulhar nas suas águas, ali profundas. Poucos moleques ousavam, Paquito era o único vira-latas que o fazia.Havia domingos ou feriados que nos juntávamos em 4 ou 5 amigos e bem cedo nos mandávamos pelas estradinhas rumo a Álvora, Severínia, Marcondésia, Monte Azul, Barretos ou São José do Rio Preto. Passávamos o dia pedalando e só ao entardecer ou noitinha voltávamos pra acalmar nossas mães e orgulhar nossos pais.
Hoje, em certos sábados ou domingos e feriados nos juntamos em 10, 15 ou 20 amigos e nos mandamos bem cedo rumo as trilhas de Nazaré Paulista, Pedra Bela, Cunha, Serra da Mantiqueira, do Japi, Paraibuna, Redenção da Serra, Salesópolis, Kinkakuji, Serra Negra, Campos do Jordão, Passa Quatro, Itanhandu, Rota dos Castelos, Estrada do Kazanga, Rio Escuro, Alumínio, Doninhas, Limoeiro e tantos outros cantos, recantos e encantos que volto a reviver e sentir a “suíça” destrambelhando comigo ladeira abaixo ou rangendo e resfolegando pirambeira acima. Às vezes, nas descidas, seguro um pouco o ânimo dela pro Paquito não escapar da garupa e rolar desnorteado e assustado pelas pedras do caminho, como já acontecera comigo e com ele.
Hoje, a mochila que levo pelos caminhos e trilhas da vida, é também pequena, mas acomoda bem minhas coisas poucas. Muito tempo se passou, mas me surpreendo em momentos intensos que esse tempo nada ou muito pouco mudou.
Otoni
Janeiro de 2013.
A BICICLETA DO CAJU.
Início dos anos 50, beirava meus 14 ou 15 anos.
A Gráfica Barão ficava em Olímpia, na Rua Jorge Tibiriçá 1.263, onde Barão meu pai me ensinou o primeiro ofício: tipógrafo. Caju era um garoto amigo, da mesma idade, que também se iniciava no mister.
Monte Azul era uma cidade próxima, cerca de 45km, pra onde se ia ou de trem, pela bitola estreita da extinta
São Paulo Goiás ou pela estradinha rural de terra que serpenteava entre cafezais, passando pelas porteiras que anunciavam, em escrita a cal, as Casas Pernambucanas.
Lá, Caju tinha uns tios e primos, donos de um hotel ao lado da Estação, que lhe venderam uma magrela.
Diante das fontes de tipos distribuídos entre caixas altas e baixas, enquanto compúnhamos tipo a tipo no componedor, Caju levantou o problema de não saber como ir buscar a magrela. Aventura à vista, me ofereci, desde que me pagasse a passagem de trem já que a hospedagem sairia de graça.
Acordo fechado, me preparei. Sairia de Olímpia à tardinha após o expediente, tomaria a Maria Fumaça e chegaria à noitinha em Monte Azul, dormiria no Hotel dos primos e sairia bem cedinho, aí pelas 5 ou 5,30h pra chegar em Olímpia ainda com tempo de iniciar o expediente na Gráfica, às 8 horas da manhã. Orieta, minha mãe, se preocupou, se exaltou, recriminou, discursou, mas de nada adiantou, pois o Barão, meu pai, me estimulou, pois assim fazer fazia parte do aprender o ofício do viver.
Andar de Maria Fumaça era um tesão, ainda mais de graça! Resfolegando uma fumaça preta e soltando uma brasa miúda que entrava pelas frestas das janelas, queimando a roupa e os cabelos, a fornalha chiando sobre os trilhos seguia apitando e parando pra carregar e descarregar gente e carga nas estações de Álvora, Severínia, Marcondésia e finalmente Monte Azul, meu destino. Cada estação uma atração, pois ali, no horário do trem, a moçada de banho tomado, a roupinha passada e Baracchini no sovaco se reunia para o footing.
No hotel, a pouca luz acentuava as paredes escuras e num canto ainda mais escuro, atrás da porta emperrada
da despensa me apresentaram uma carcaça que chamavam de bicicleta. Eu a examinei com cuidado e pena, mas muito tenso, pois imaginava que os primos iam me entregar uma bike em condições de enfrentar a estrada.
A ferrugem se espalhava pelo quadro, pedais e corrente. Do que restava da pintura, deu pra perceber que já fora uma clássica Phillips inglesa dos anos 30/40. Óleo, não havia, mas tive sorte de arrumar um resto de graxa pra lambuzar a corrente, o volante e a catraca 18. Com uma bomba precária consegui encher as câmaras que se encontravam “no chão”, mas não estavam furadas. As sapatas gastas já deixavam o metal cantar em contato
com o aro. A campainha funcionava.
Mal dormi, pois o desafio tomara uma dimensão maior. Pelas 5 horas, ainda escuros o hotel e o dia, todas as almas dormiam, de maneira que ninguém havia pra dizer um bom dia ou um desejo de boa viagem. Abri a porta da geladeira, encontrei apenas um copo com leite pelo meio, debaixo de uma crosta de nata que engoli e de lá me mandei.
Ainda na madrugada escura, em mangas de camisa enfrentando o vento frio ouvi um pio de coruja e atento, a vislumbrei sobre o portão de ferro do cemitério, à esquerda da estrada, pouco antes de Marcondésia. Aumentou o frio e o vento. Me vieram à mente todas as almas penadas, assombrações, mulas sem cabeça, fantasmas e miasmas que me rondavam desde os tempos de criança, quando na fazenda, à beira da fogueira em noites de lua, ouvia as histórias tenebrosas dos contadores de causos que fascinavam, atemorizavam e alimentavam minhas fantasias e meus medos.
Fechei os olhos, invoquei meus anjos, queimei as pernas e passei ventando. As almas dormiam em paz. Fui me acalmando, o coração compassando, o dia clareando, a magrela rangendo até me perceber chegando.
A velha Phillips era outra, eu a percebi valente, inteira, como que rejuvenescida, radiante pela missão cumprida
e querendo mais, pois já alquebrada e gasta, não se imaginava capaz de enfrentar a trilha Monte Azul/Olímpia.
A velha Phillips me estava agradecida, eu a acariciei também grato e emocionado. Hoje, relembrando este momento de cumplicidade entre o menino jovem e a bicicleta, minhas imagens se misturam, se transformam
e ressurgem. Aquela bicicleta sou eu hoje.
Otoni
Agosto de 2012
PEDREGULHOS.
Paquito chegou em casa miúdo e mal desmamado. Foi criado com jeito, carinho e trato. Eu era quem mais conversava com ele, lhe dava banho com água e creolina na dose certa pra livrá-lo das pulgas e carrapatos e talvez por isso, a mim ficou mais apegado.
Era um vira-latas esperto, alegre, agitado e independente, branco com manchas pretas, vestígios de fox paulistinha, que gostava de viver intensamente, varar madrugadas a dentro atrás de cadelas no cio e de andar de bicicleta.
Eu tinha uma Merck Swiss que juntando com a minha cabeça inquieta e mais minhas pernas afoitas formavam minha bandeira de guerra pela conquista da liberdade. Elas me levavam pra mundos distantes onde o horizonte que se via se misturava com a névoa difusa de um mundo que só eu vivia. Paquito me acompanhava.
Pra onde fosse com a minha magrela, Paquito saltava na garupa e dali não desgrudava enquanto vento e movimento houvesse.
Às vezes o tiro era curto, apenas ia comprar o pão, às vezes longo, o quanto me permitia o fôlego e os músculos das pernas, pedalando pelas estradinhas de terra que me levavam pra Ribeiro dos Santos, Álvora, Severínia, Monte Azul, Bebedouro, Barretos e outras cidades e bibocas que faziam parte do meu universo infinito.
Também as barrancas do Rio Cachoeirinha e Turvo faziam parte do meu imenso e mágico mundo. No Cachoerinha aportava Dolorosa, minha canoa, onde, aos domingos, ia pescar e canoar. Paquito era o proeiro, vigiava, eu varejava.
Nas tardinhas de verão, dia sim, dia não, após o expediente da Gráfica, onde exercia o meu primeiro ofício, costumava pegar a magrela e chispar pro Cachoeirinha nadar nos seus remansos enquanto ainda
nos espiasse o sol.
Saindo da cidade, após alguns quilômetros de estrada de chão, um descidão, que a ânsia de chegar ao rio me fazia desembestar com tudo o que me permitiam as pernas e a Merck com a sua única catraca 20 que girando
e ardendo fazia o que podia.
Era uma tarde quente, eu e Paquito na magrela ventávamos descida abaixo quando sem saber a razão, foi se o controle, e a queda aconteceu. Dessas quedas que a gente só percebe quando já se está voando sem saber pra onde, esperando só se arrebentar.
Caí, rolei, ralei e estatelado no chão, braços abertos qual crucificado mal percebia o sol escondido no meio do pó.
Devagar, devagarinho fui me sentindo, se alguma dor havia e de leve, levemente mexendo os dedos da mão, uma depois a outra, mexendo os pulsos, braços, ombros e assim seguia me testando pra saber se nada escapulira do lugar, quando da poeira surgiu Paquito que vinha me avisar que com ele, tudo bem.
Me percebendo inteiro, veio festejar, me lamber o rosto. Ele balançava o rabo, eu também sorria e lhe dei a face. A sua língua barrenta de terra e saliva foi me lambendo a pele e nela deixando grudados, pedregulhos que saiam da sua boca entulhada deles. Sei lá quantos deve ter engolido.
A alegria ao cair na água que lavou o corpo ralado e levou rio abaixo o que ainda sobrava do susto, foi bem maior naquela tarde.
Na volta, a magrela não nos trouxe. Eu, lentamente a carreguei como dava, com sua roda dianteira entortada
e com vários raios quebrados.
Paquito à frente, mostrando o caminho, agitado, contente, sem se preocupar com o sol que com o dia fugia
e as primeiras estrelas surgiam pra não deixar que a escuridão nos assombrasse.
Em paz, pelo caminho já previa a tempestade que me aguardava, com minha mãe preocupada, discursando o sermão inútil e mais brava ainda quando visse minha camisa encardida e rasgada, inaproveitável para o uso de me vestir.
Passaram se os anos, Paquito se foi, a Merck também, o Cachoeirinha foi poluído, a Dolorosa se desmanchou e as águas levaram seus restos de tamboril para o mar e os pedregulhos até hoje me acompanham na lembrança, quando nos momentos difíceis eu os sinto ardendo, me ralando e queimando o corpo, mas nos momentos de paz eu os percebo me acariciando a face.
Otoni
Outubro/2013
SALESÓPOLIS, TRILHA NOTURNA.
Carreguei as baterias. Farol, lanterna auxiliar, manguitos, corta vento, abrigo de frio e chuva.
A lua de Salesópolis nos esperava, e a chuva, respeitando nossos anseios e medos, fugiu.
O sol, com toda a sua pompa e cores foi se escondendo humildemente, respeitosamente, pra não incomodar a lua. Hora do Ângelus, enquanto todos se aquietavam nós acelerávamos e dilatávamos nossos corações, nossas pupilas, contrapondo à quietude e a mansidão da noite.
“Lua bonita, se tu não fosses casada
eu preparava uma escada
pra ir no céu te buscar”...*
Percepções, lembranças afloram, o emocional divaga.
...“deixa São Jorge no seu jubaio amuntado
e vem cá para o meu lado pra gente viver sem dor”...*
A lua célere correndo arisca entre os vãos da mata.
O subidão judia, a escuridão não nos permite ver o seu final, a lua serena, encoraja.
“Noite alta, céu risonho
a quietude é quase um sonho
o luar cai sobre a mata
qual uma chuva de prata
de raríssimo esplendor”...**
Percepções, lembranças, conotações. Aos 15 anos, na estrada do Ribeiro, o mesmo céu, a mesma lua, a mesma noite e os mesmos mistérios, sem farol, sem manguitos, sem abrigo, ao abrigo da noite, da crença e dos sonhos.
Percepções, lembranças, conotações, a lua, sua poesia, seu romance, seus mistérios, as serenatas em Olímpia, Conservatória, frestas de janelas.
...“A noite estava assim enluarada, quando a voz
já bem cansada eu ouvi do trovador
Nos versos que vibravam de harmonia, ele em
lágrimas dizia da saudade de um amor”...***
Chegamos em paz, na paz da igreja matriz de Salesópolis. Relaxei, liguei pra dizer com Marylene, preocupada e sem dormir, enquanto eu não chegasse.
...“e chegando o dia certo
numa noite iluminada
a lua chegou bem perto
pra juntar num fim de festa
meu sonhar ao seu afeto”... ****
Grato Paulinho e amigos do luar.
Quero mais.
* Lua Bonita/Zé do Norte
** Noite cheia de estrelas/Cândido das Neves
*** Última estrofe/Cândido das Neves
**** Marylene/Otoni Gali Rosa
Otoni
Novembro/2013
O PRESENTE DE NATAL.
Quando posso, me retiro pras praias do norte fugindo das pedras da grande cidade.
Por lá temos um canto onde mais Marylene nos aquietamos pra ouvir o vento, ver o céu e sentir o mar.
Levo sempre minha bike pra trilhar, no mais das vezes só, pelos caminhos, sendas, passagens e estradas que vou descobrindo conversando aqui e ali com os caiçaras e nativos. Assim fiz nos estertores de 2013 até o nascer do ano agora.
Há por lá um caminho que vai deixando pra trás o asfalto, as casas, as pessoas e vai se embrenhando morro, mata, pedras e terra acima. É duro de domar e eu só o desafio quando me sinto forte de corpo e alma e preciso estar só pras minhas conversas comigo mesmo que só são ouvidas pela surdez da minha bike. O caminho termina no alto de um promontório, onde à beira de um penhasco se agarra um pequeno farol. Lá em baixo, a imensidão do Atlântico.
Nas poucas vezes que vou por lá, me sento no fim do caminho à sombra de um frondoso jequitibá, tendo a vista do farol, pra descansar o suficiente e encarar a volta, tão cansativa, ou mais, que a ida. À frente, um portão e muros altos deixam entrever partes de uma casa que se deduz bonita, altiva, distinta, isolada e só. É a última casa de um pequeno condomínio que termina ali. Ficava imaginando quem lá se refugiaria, naquela bucólica solidão e imensa paz.
Pouco antes do Natal, saí pedalando sem destino. O vento sul me chamou pro norte, me deixei, fui pro farol. Cheguei bem, descansei a magrela e me sentei à sombra. O imenso portão se abriu e por ele saiu uma figura simpática que logo me viu e dirigiu o olhar curioso.
- quer água?
A água da minha Camel acabara e a da caramanhola estava pela metade.
- quero!
A partir daí a conversa fluiu espontânea, alegre e solta, como desconhecidos velhos amigos.
Observações, ideias, visões, conceitos, sorrisos largos, como se pauta combinada e ensaiada houvesse.
- o que você faz na vida além de pedalar ?
- sou artista, publicitário...
- cara! Sou artista também! O seu nome?
- Otoni Gali ...
- não! Eu te conheço!...
- e o seu?
- Carlos Araújo...
- não! Mais te conheço eu!!!! Você não está na Itália a serviço do Vaticano e do governo italiano?
- Psiu!!! Dei uma fugida pro Brasil...
A conversa cresceu e nos lembramos de 35/40 anos atrás quando nos conhecemos no ateliê do Élcio, na Francisco Leitão onde, juntamente com Renina Katz, Iglesias, Maria Bonomi, Guilherme de Faria, Darel, Fang, Gilberto Salvador, Tomie Ohtake e muitos outros, confidenciávamos nossas histórias e criávamos nossas litografias. Relembrou até de conversas que tivemos enquanto desenhávamos na pedra calcária o que seria tratado, prensado e eternizado em papel de algodão. Conversamos certa vez sobre o sopro Divino...disse. Papo de artistas...
Descansado e renascido pela energia que ali surgiu, na presença de um dos maiores artistas da arte contemporânea, após conhecer sua esposa Ana e seus filhos, retomei a bike e trilhei a volta.
Chegando no meu canto, encostei a magrela e a agradeci pelo presente recebido, sem olhar no cateye, pois ele jamais conseguiria marcar o quanto e para onde viajamos naquele dia.
Otoni Gali rosa
Dezembro/2013
Obs.-Para quem não é tão ligado ao meio da arte, vale a pena conhecer um pouco esse artista, iluminado pelos mestres renascentistas, destacadamente por Michelangelo, como ele próprio se reconhece influenciado. Consulte no Google, Carlos Araujo artista plástico.
O AFOGADO.
Nas tardes quentes de verão o sol de Olímpia se deitava mais tarde de maneira que mesmo encerrado o expediente da Gráfica Barão ainda sobrava uma quirera do dia que poderia ser aproveitada.
Minha Merck Suisse era azul cor do céu, cor do horizonte infinito que buscávamos em nossas pedaladas e com ela saia desembestado descendo a Rua Jorge Tibiriçá com o Paquito, meu cão, engarupado. Passava pela Sapataria Vieira onde me juntava com o Adilson e nos mandávamos pro Cachoerinha pra nadar nos seus remansos.
Eram cerca de 8 quilômetros de terra, “costelas de vaca”, areia e pedregulhos que atropelávamos ensandecidos, competindo com o sol manhoso que ameaçava se esconder pelas bandas de Guapiaçu.
Chegava-se ao Cachoeirinha por uma velha ponte de madeira que também servia de plataforma para saltarmos em um poço do rio que se formava 5 ou 6 metros abaixo. Bicicletas e roupas largadas no chão, despencávamos da ponte curtindo o vazio e na sequência o baque nas águas, ali profundas por 4 ou 5 metros. Paquito, cão nascido com vocação pra aqualouco, se despencava atrás do dono.
Numa dessas tardes de verão quando chegávamos ao rio ouvimos um alarido agitado e estranho. Gritos angustiados, pedidos de socorro! Do alto da ponte, ainda pedalando, vimos o cenário à beira do poço e entendemos o enredo. Uma família, homens, mulheres e crianças gritavam desesperados por um deles que acabara de se afogar.
Sem tempo de tirar a roupa enquanto uma vida se esvaia, saltamos da ponte e por um bom tempo mergulhamos no limite do nosso fôlego tentando encontrar alguém no fundo frio, lodoso e turvo do rio. Após um bom tempo nesta luta, esgotados e sem mais forças paramos a busca e aceitamos o fato consumado da morte do afogado. Assinamos o atestado. Paquito saiu em seguida, agitando o couro, espargindo água e se arrastando na grama, feliz.
Na época, eu era também canoeiro e tinha apoitada logo mais abaixo, cerca de uns oitocentos metros, minha canoa que mais meu sócio Pavesi, construímos com a madeira rude do tamboril. Fui buscá-la pra servir de apoio na busca enquanto Vieira tentava como podia se solidarizar com a dor, o sofrimento e o desespero da família do afogado, ali tão perto, ali tão distante, ali tão só.
Subia o rio varejando minha canoa de volta ao poço, anoitecia, quando percebi faróis de carros cruzando a ponte e chegando ao rio. A notícia já tinha chegado à cidade e de lá vieram aqueles carros da polícia trazendo o delegado, de familiares e amigos do afogado, algum curioso talvez.
O cenário apagado e tendo no fundo o afogado foi se iluminando com os carros de faróis acesos alinhados à beira do poço permitindo que eu e Vieira entrássemos novamente em cena. Posicionávamos a canoa e enquanto a suave correnteza a movimentava rio abaixo, fazíamos uma varredura com o varejão procurando o corpo naufragado. Quando se percebia algum obstáculo, um ou outro se revezando, mergulhava acompanhando a vara até a ponta pra identificar o enrosco. Repetimos a varredura por algumas horas até que na vez do Vieira, ele voltou trazendo pelos cabelos o corpo do afogado, pálido, roxo, escorregadio e lanhado pelo varejão.
A presença da morte tornou aquela noite quente de verão muito fria. Recebemos abraços, agradecimentos, inclusive da polícia. O delegado nos pediu permissão pra anotar nossos nomes e endereço, pois nos procuraria caso precisasse de bombeiros voluntários. Isso nos aqueceu um pouco. Na época, a guarnição do Corpo de Bombeiros mais próxima ficava em São José do Rio Preto, cerca de 50 quilômetros por estradas de terra, poeira ou lama.
Agradecemos as caronas oferecidas mas preferimos voltar pedalando pela noite e seus mistérios. Eu tinha muito o que conversar com minha bike, companheira de tantas aventuras. Aquela ainda não terminara.
Enquanto nós, agora “bombeiros” fazíamos nosso serviço, a notícia de que alguém se afogara no Cachoeirinha se espalhava pela cidade. Também chegou à minha casa antes de mim. Por sorte, um pouco antes, mas o tempo suficiente pra deixar os meus preocupados, minha mãe em pânico. Meu pai já fora pegar o carro emprestado do tio Salvador que aderiu à comitiva e voltaram pra buscar minha mãe que iria atrás do filho, vivo ou morto. Abortaram a busca, pois nos encontramos na porta de casa. Eu chegava pedalando, triste pelo afogado, feliz por ajudar, feliz pela nomeação feita pelo Delegado, e já pensando, negociando e convencendo a magrela a pintá-la de vermelho.
Otoni Gali Rosa
Setembro/2014
SERRA AZUL.
Os meteorologistas falharam, o sol se fez, embarquei minha mountain bike e fui pro Serra Azul pedalar pelas pirambeiras das terras de Itupeva com a tribo do Sampabikers. Parei no posto BR da cidade jardim pra engordar os pneus da magrela. Estiquei até a loja de conveniência pra tomar um café. Ali é um point de motos. A tribo das Harleys encouraçada nas suas armaduras de couro me olhou de cima a baixo, eu que me sentia meio fantasiado de papai Noel com a minha barba branca, pernas de fora e bermuda vermelha, justa na bunda e realçando a genitália. Disfarçado de sério observei o bando do couro. Nem um nem dois barrigudos, mais que quatro. Nem um nem dois fumantes, mais que seis ou oito entre baforadas de espera tensa e agitada.
Café tomado, pneus da magrela calibrados, tomei a Bandeirantes. Seguia calmo, a cultura 103.3 no dial me embalava ao som de Debussy quando um troar roubando minha calma passou disparado à esquerda e à direita da minha marea como um vespeiro de cassunungas ferroando meus tímpanos. Eram eles.
Cheguei. Lá estavam eles novamente com suas motos possantes e reluzentes que se juntaram a outros tantos aumentando portanto o colorido dos couros, as muitas barrigas proeminentes e os muitos cigarros fumegantes. Mais olhares de soslaio e medição, eles de lá e eu de cá, sem ninguém saber quem ali era ET. Montei minha magrela de quadro doado, uma roda e um guidão ainda da Talera de 25 anos atrás, ainda suja e respingada de merda de vaca da última pedalada em Igaratá e me juntei aos meus.
Pedalamos poucos metros no asfalto e já estávamos na terra e no cascalho, chacoalhando nos buracos e amassando o esterco do gado nelore com quem dividíamos o espaço. As narinas se abriram pra se embebedar do cheiro do chão e do mato e eu me sentindo criança feliz me percebi mais contente ainda por saber que ali eles não apareceriam.
Bem adiante, feliz, suado e um pouco cansado parei numa sombra pra repor energia. Abri uma embalagem de gel e tive o cuidado de guardar a pontinha do papel alumínio no bolso.Engoli o gel e também guardei o resto da embalagem. Aí divaguei. Será que eles teriam este cuidado e respeito com o mundo? Acho que não, pois as bitucas jogam no nosso chão, a fumaça suja no próprio pulmão e no de quem mais respire e a ostentação e o barulho ensurdecedor das máquinas também são formas de agressão.
Na volta, enquanto o dial me oferecia um Concerto de Aranjuez, interpretado por Paco de Lucía, na calma do meu corpo fortalecido viajava meu pensamento sobre as questões do ter e do ser, e mais que isso, a de perceber e sentir o Ser.
Otoni Gali Rosa
Setembro/2006.
SAMPA BIKERS, 20 ANOS DE ESTRADA.
Fomos chegando de carro, órfãos das bikes, paletós, pés perdidos sem as sapatilhas, esposas, companheiras, nenhum capacete, cabelos ajeitados, brincos, casacos, paetês, alguma grife, um cheiro outro que não era o do suor, da terra e do mato. Renata, não. Chegou pedalando, cortando o frio com seus cabelos de fogo, seu viço.
Évidence, Paulinho na porta, receptivo, tenso, sorriso de criança, amigo, efusivo, dono da história.
Amigos, lembranças, toques, choques de emoção, tempos idos presentes, ausentes também ali. As camisas perfiladas, mais estradas, mais momentos. Tenho estas, aquelas não vivi. Quem as viveu? Quem trilhou nas estradas que não trilhei? Quantos não trilharam as tantas que já trilhei?
Imagens no telão, estou por ali, estive por ali.
Me surpreendo com o tamanho da estrada. A minha, que aos 10 anos comecei a trilhar, década de 40, foi abrindo rumos, desembocando nas estradas do Sampa Bikers, do Vila, do Olavo, da Renata e tantas outras estradas no pedalar da minha vida.
Oscars, medalhas, imagens contidas, histórias e emoções embargadas que o peito não gritou, abafado pelo som, alegria, a dança agitando os corpos no ritmo desacostumado pois não era o ritmo do pedal que nos embala a vida, quer na subida mais dura, na descida mais louca ou no plano mais brisa.
Grato Paulinho, grato aos amigos tantos, “Gracias a la vida que me ha dado tanto”...se me permite Violeta Parra.
Otoni Gali Rosa
agosto de 2013
RAÍZES MORTAS.
Voltei à Olímpia.
Aniversário da Marylene, reunião em família, lá fomos pelos 450km que nos separam das origens.
Levei minha bike, combinei com Cláudio, super montanheiro e grande companheiro residente
por lá e na sexta saímos para trilhar.
Na saída da cidade já senti a ruptura, por ruas, concreto e asfalto que desconhecia, não era a Olímpia onde vivi.
Tomamos a terra e em um trecho da antiga boiadeira que ligava Barretos à São José do Rio Preto e daí por outros sertões à fora, passamos pelas ruínas de uma escola rural morta em seu silêncio, sem o alarido vivo e moleque de crianças que já partiram e de um boteco que na época dos tropeiros deveria ter vida intensa onde se contavam histórias que não se tem mais como resgatar. Me lembro que ainda cheguei a conhecer acampamentos de tropeiros que pousavam nas terras dos Bredas para o descanso, o preparo do arroz tropeiro, tudo juntado numa panela só sobre fogo de lenha aceso no chão, café de bule, muita prosa, muitos causos e às vezes uma viola. Outra ruptura.
Mais adiante, entre fazendas, à beira do caminho, carcaças de javalis abatidos, uma praga exótica que por falta de predadores naturais destroem lavouras, animais e ameaçam vidas. Em uma fazenda conheci uma caminhonete adaptada à caça noturna, com o assento do atirador acima da cabine e duas cadeiras abaixo e ao lado para os iluminadores e seus faróis de alta potência e alcance. Outra ruptura, eu que cheguei a ver pelas minhas andanças pelo Cachoeirinha e Turvo do meu tempo moleque, sucuris, capivaras, jacarés do papo amarelo, ariranhas e também fartura dos curimbatás, piaparas, lambaris e outros peixes, hoje dizimados pelas exóticas tilápias.
Grato Claudio pelo pedal que também foi uma profunda viagem no tempo e na memória, me ensinando que o passado que morre, reacende os valores da vida que se vive, profundamente marcados pelo que se viveu.
Otoni Gali Rosa
junho de 2019.
EU, BATMAN E A FISIOLOGIA.
Batman nasceu em 1939 pelas mãos do escritor Bill Finger e do ilustrador Bob Kane.
No mesmo ano eu nascia em Olímpia.
Em comemoração aos 80 anos do Batman, Sampa Bikers com o apoio da Warner Bros promoveu o Pedal do Batman reunindo cerca de 100 ciclistas que vestindo as camisas com o símbolo do morcego circularam pelas ruas de São Paulo na noite de 8 de julho.
Em virtude da coincidência da idade recebi uma singela homenagem e a Warner me forneceu em cinza e preto, a roupa do antigo Batman.
Cheguei apressado na Adoro Bike, o ponto da largada, abracei os amigos, ajudei alguns nos ajustes e recebi a fantasia pra me vestir. Era um macacão, peça única onde me enfiei e que se fechava por trás, com um ziper, como nos vestidos femininos. Calcei as sapatilhas, ajustei a máscara do morcego no capacete e já me chamavam para as fotos da largada quando POW! A bexiga envia uma mensagem para o cérebro: estou cheia, é preciso verter…o relógio me dava 4 minutos pra largar, corri à toalete que felizmente estava livre, entrei, me tranquei e fui ao ato. Pânico! O macacão era todo fechado, fui ao ziper nas costas, tentei por cima do ombro com a direita por baixo pela omoplata com a esquerda e não conseguia acesso…mais pânico…pensei em sair do recinto pra pedir ajuda, mas pedir a um amigo ou amiga pra abrir o ziper para acessar o assustado recolhido poderia ser interpretado como assédio…mais pânico… aí pensei em arregaçar uma das pernas do macacão ao máximo que desse para mijar pelo lado como criança, quando usava calça curta ou calção sem braguilha, não deu…mais pânico…me vieram pensamentos dos tempos de moleque, assíduo leitor de gibis e não me lembrei de nenhum momento em que visse nos quadrinhos o Batman mijando, ih! o Batman não mija, daí esse maldito macacão isento de acessórios que assistam à fisiologia do Batman nascido em Olímpia…mais pânico…eu não sou o Batman…mais pânico…daí, ensandecido, meti as mãos nas partes disposto a rasgar a fantasia anti-ergonômica…mais pânico…mas aí, senti na ponta dos dedos um minúsculo e estranho fragmento, nada mais que um ziper anão de pequeno curso, preto bem disfarçado sobre tecido preto…alívio total, bexiga agradecida e eu agradecido ao Batman…ele era humano!
Saímos pra aventura rumo à Vila Madalena, Beco do Batman, escondido na São Paulo Gotham City, em clima de muita alegria e festa. Dali, rumo ao Ceasa e Vila Leopoldina quando na Praça Panamericana um cisco de metal deixado pelo Coringa furou a câmara da minha batmanstumpjumper. Comigo, no apoio ficou Carlão, consertamos o estrago e partimos na busca do pelotão, nos agregamos lá pela Leopoldina e voltamos em festa e agradecimento ao herói nascido de Bill e Bob Kane.
Grato Paulinho, grato Warner, grato Adoro Bike, grato Carlão, grato Batman, grato a todos.
Otoni Gali Rosa
julho/2019
PROSA PARA BOI DORMIR.
O frio de sábado inibiu e lá fomos nós, apenas uma Branca de Neve, Célia, e 5 anões, Avedis, Clóvis, Mauro, Otoni e Rogério, enfrentar os 10 graus, mais aqui, menos ali, e seus ventos enregelantes nos morros de Jarinu.
Trilha curta de 38 km mas com muita variação técnica. Três longas e duras subidas, muito visual, antigas fazendas, roças, porteiras, cancelas e um single pasto acima por um caminho de vaca afundado na terra com grama alta que exigiu muito braço, perna e abdome e em certos momentos passagem inevitável sobre o mar de merda vacum.
Lá pelas tantas, o gado impedia o caminho e não queria prosa, mas entre nossos elogios, carinhos, promessas, solicitações, propostas, ofertas e zurros, mugidos e berros de ambas as partes o acordo foi selado para continuarmos a gelada lida.
Grato ao frio e ao céu azul. Grato ao pasto verde e à merda idem. Grato à cor a ao cheiro da terra. Grato às subidas que aquecem e queimam o coração e as pernas.
Grato aos amigos que se irmanam nos desafios das trilhas.
Otoni Gali Rosa
Agosto/2019
DE MIL NOVECENTOS E TRINTA E NOVE,
OS MEUS OITENTA E UM.
Na foto, dos arquivos de Moacir Buniotto, a cidade de Olímpia no ano de 1939, o ano em que nasci. Assinalei na foto, aproximadamente, a casa onde Orieta me apresentou a luz e onde morava a família e se instalava a tipografia do Barão, meu pai.
Cerca de 12 anos mais tarde ganhei ¼ de uma bicicleta Monark Suisse, pois éramos 4 irmãos e a magrela servia a todos de acordo com uma planilha elaborada pelo meu pai.
Das primeiras fronteiras desse mundo me libertei pedalando minha magrela em busca de aventuras e pelas suas estradinhas poeirentas as primeiras sensações de liberdade, independência, autossuficiência e poder ao vencer os insólitos desafios.
No alto, à direita e isolado, o cemitério por onde eu e mais alguns moleques malucos pedalávamos em busca do Rio Turvo, Tabapuã etc.
No alto, ao centro nossa saída para Álvora, Severínia, Marcondésia, Monte Azul, Bebedouro etc.
À esquerda, o limite da foto mostra o rio Olhos D’Água que carinhosamente chamávamos de bosteiro, uma vez que levava as merdas da cidade pra longe como se, ignorantemente, assim delas se libertasse o povo.
Continuando além do rio outro tanto da cidade já existia, culminando lá no topo com a Estrada Ferro São Paulo Goiás e por onde saíamos em busca do Rio Cachoeirinha, Ribeiro dos Santos, Guaraci, Barretos, São José do Rio Preto etc.
Oitenta e um anos passados, muita coisa mudou, outras nem tanto. A cidade cresceu, ultimamente aquecida pelas águas quentes das Termas dos Laranjais, as águas do bosteiro estão sendo tratadas e já se vê por ali alguns tímidos peixinhos, os trilhos da estrada de ferro foram estupidamente arrancados e eu continuo pedalando e pintando em busca da minha liberdade, independência, autossuficiência e poder ao vencer os insólitos desafios.
Otoni Gali Rosa
Janeiro de 2020
RAÍZES PROFUNDAS.
Morungaba é uma região que oferece caminhos fantásticos tanto para os montanheiros como para os speedeiros. Paulinho do Sampa Bikers convidou alguns MTB raiz para uma exploratória partindo de Morungaba rumo a Monte Alegre do Sul e lá fomos, Paulinho, Flávio, Inácio, Mário, Okada, eu e nossa vereadora Renata Falzone, respirar vida e aventura.
Fomos trilhando terra, sítios, porteiras, fazendas, matas, refloras, uma delas de mogno, bonita e esperançosa de se ver, pedras, céu, sol, nuvens, um sagui serelepe que nos atravessou à frente, quase atropelado mas que seguiu seu prumo assustado com alguma história pra contar.
Pelo meio do caminho uma subida maldita com cerca de 2km pra judiar e incendiar as pernas. Encarei, busquei força nas raízes e fui, parando às vezes pra recuperar o coração disparado, assustado e retomando a seguir tendo como companhia solidária, um apoiando ao outro, a figura gigante da Renata, nossa corajosa futura vereadora. Em uma dessas paradas, arrancando do zero em terreno instável e colocando toda a força no arranque, uma fisgada e uma distensão aconteceu na lombar. Seguimos, chegamos ao topo e alguns alongamentos aliviaram a dor e me fizeram continuar e fechar a aventura.
Pelo caminho, já no terço final, cansado e com minhas dores, uma árvore centenária me ofereceu sua sombra e suas raízes enormes e expostas pra me apoiar. Ali nos irmanamos e no silêncio do repouso, conversamos longamente.
São essas nossas raízes sólidas e profundas que encravadas na terra, no tempo e na história é que nos fazem seguir, subir, insistir, enfrentar as chuvas, ventos e tempestades buscando sempre o alto, o céu e o fim da jornada.
Grato a todos.
Otoni Gali Rosa
Fevereiro de 2020
foto: Flávio Grossi, um dos raízes
DAS TRIPAS CORAÇÃO.
Mais uma vez subimos pra Campos do Jordão em busca da paz e quietude do Toriba e aproveitei pra me meter na zorra do L’Étape.
Comecei cismado pois a ansiedade do dia anterior mexeu com minhas tripas e dada a largada fui sentindo o corpo aos poucos, aquecendo devagar, esquecendo do mundo e focando no piso, no entorno, nos ciclistas e seus modos cuidando do pilotar defensivo, no ritmo da bomba mandando vida e do fole buscando o ar, no giro e na cadência dos pedais, nos ombros e braços soltos, sentidos atentos, e assim fui descendo pela serra nova segurando o ritmo pois uma prova se ganha na subida e não na descida.
Passei pelo local da tragédia, onde Tejada tomou o desvio para o céu, balancei, me recompus e segui.
Saindo da estrada nova, toma-se um viaduto a caminho de Santo Antônio do Pinhal e aí uma pequena subida, curta e chata, boa pra testar as condições gerais, observei que estava muito bem e já possuído, apertei um pouco mais e soltei mais o giro até o final.
Faltando 20km para encerrar a prova começa a subida da serra velha que serpenteia por 14km e é onde se define quem chega bem, quem chega mal e quem não chega. Aí o emocional tem que ser trabalhado e é preciso convencê-lo de que o cansaço é apenas sugestão, que tá sobrando energia, que o sol não queima e nem te rouba sais e que a chegada está logo ali depois de apenas umas poucas curvas. Tanto menti pro meu emocional que chegando ao final da subida ainda consegui um sprint de uns 100 metros pra ultrapassar alguns ciclistas. Daí até a chegada na Abernéssia um pau de 5 ou 6km por pista normal.
Cruzei em 3h13, média de 17,86kmh, e entre 827 ciclistas inscritos nos 60km, cheguei em 695, à frente de 132 ciclistas de categorias mais jovens, aliás, mantive a tradição nestes 6 anos de participação de ser sempre o mais antigo, ou velhinho, ou idoso, ou dinossauro, ou um clássico na prova.
Subi ao pódio, conquistando o 3º. Lugar na categoria 70+ e tive a grande alegria de estar ao lado do Percy, 1º. Colocado, grande amigo e grande companheiro de pedaladas e aventuras pelas trilhas de Ubatuba.
Após a chegada a primeira coisa a fazer é ligar pra Marylene, tranquilizá-la e dar baixa na sua ansiedade e temores.
Grato à Marylene que sabe compreender e apoiar as travessuras de um menino/senhor de idade provecta em suas aventuras.
Grato ao Sampa Bikers, Night Bikers, Vila, Polibikers, Starbikers, TLP, PVM, TIP e tantos ciclistas raiz e nutellas com quem tenho pedalado e aprendido pela vida.
Grato à Ciclo Ravena, casa de amigos que tem mantido minha Trek nos trinques.
Grato ao Aref e seu reino encantado Toriba que nestes 6 anos de L’Étape tem me recebido como um rei, plebeu artista que sou.
Grato ao Barão meu pai, que me deu a primeira bicicleta e me ensinou a tocar em frente, faça chuva ou faça sol, caiam raios ou sopre a brisa, se ilumine ou escureça o dia.
Otoni Gali Rosa
Setembro de 2021